*** Guilherme Follador
No fim do ano passado, ao julgar recurso da Fazenda Nacional, a 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) confirmou o entendimento de que, nos casos de demissão sem justa causa, deve incidir o imposto de renda sobre as verbas pagas pelo empregador ao empregado “por mera liberalidade”.
Em outras palavras, decidiu o STJ que deve incidir imposto de renda sobre as verbas rescisórias que são pagas ao empregado por simples vontade do empregador, sem decorrerem de imposição legal, de acordo coletivo ou Programa de Demissão Voluntária (PDV). É o caso, por exemplo, de algumas verbas normalmente chamadas “bônus” ou “prêmios”, cujo pagamento é feito sem que o empregador esteja a tanto obrigado, mas apenas em razão de um especial reconhecimento da qualidade dos serviços prestados pelo funcionário, ou em atenção ao tempo por este dedicado à empresa.
Para o referido Tribunal, que é o encarregado de harmonizar a interpretação dada à lei federal pelas demais Cortes de Justiça do País, essas verbas rescisórias não teriam caráter indenizatório – isto é, não se destinariam apenas a recompor o patrimônio do empregado demitido -, mas sim natureza remuneratória, implicando aumento do patrimônio do empregado e ensejando a incidência do imposto de renda.
Como o recurso recentemente julgado estava submetido ao chamado regime dos recursos repetitivos, pelo qual devem os órgãos do Poder Judiciário seguir a orientação firmada pelo STJ nos demais casos relativos à mesma matéria, a posição não será facilmente revista.
Há, porém, uma luz no fim do túnel. Isso porque, a nosso ver, a interpretação da questão nesses termos contém um grave equívoco, ao qual aparentemente não se deu atenção até agora.
Tal erro consiste em que, ao dizer que a verba paga “por mera liberalidade” (isto é, paga sem ser realmente devida pelo empregador) tem natureza remuneratória, o STJ contrariou o próprio conceito de “remuneração”, que é o de contraprestação pelo trabalho, vale dizer, de pagamento efetivamente devido pelo empregador ao empregado em razão dos serviços por este desempenhados.
Como se sabe, o contrato de trabalho é, por essência, oneroso, dando ensejo a prestações que são compulsoriamente devidas pelo empregador ao empregado, e não facultativas. E é justamente por sua obrigatoriedade que, no caso de não pagamento, podem ser reclamadas judicialmente pelo trabalhador. Portanto, as verbas que o empregador paga ao funcionário demitido sem que estivesse obrigado a tanto, vale dizer, que paga “a título gratuito”, não podem ser caracterizadas como integrantes de sua remuneração.
Dito isso, vem a pergunta: ora, mas se o pagamento dessas verbas não caracteriza indenização, nem remuneração, qual é, então, sua natureza?
E a resposta, embora num primeiro momento possa surpreender, é na verdade a única que se harmoniza com aquilo que sobre o assunto estabelecem as leis em vigor. De fato, a conclusão a que se chega a partir do exame da legislação é a de que esses pagamentos, que não configuram remuneração, nem indenização, constituem, sim, doação, sendo, por isso, isentos do imposto de renda, conforme estabelecem o art. 6º, inciso XVI, da Lei nº. 7713/88 e o art. 39, inciso XV, do Regulamento do Imposto de Renda (Decreto nº. 3.000/99).
De fato, os negócios jurídicos gratuitos, cujo representante por excelência é o contrato de doação, têm como traço caracterizador justamente a liberalidade referida pelo STJ em sua decisão. A redação do artigo 538 do Código Civil deixa isso muito claro ao estabelecer que “considera-se doação o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra”.
Aliás, mesmo quando o pagamento de determinada verba rescisória não exigível do empregador está atrelado ao preenchimento de requisito específico por parte do trabalhador (como ocorre no caso dos bônus por tempo de serviço e dos prêmios por desempenho), não resta desnaturada a doação, já que, segundo o art. 540 do Código Civil, “a doação feita em contemplação do merecimento do donatário não perde o caráter de liberalidade, como não o perde a doação remuneratória, ou a gravada, no excedente ao valor dos serviços remunerados ou ao encargo imposto”.
Portanto, não há em nosso ordenamento jurídico espaço para outra conclusão senão a de que as verbas rescisórias pagas “por mera liberalidade” do empregador, ainda que ligadas a critério objetivo de desempenho ou tempo de serviço, constituem doação, sendo, pois, isentas do imposto de renda.
O resultado da análise revela a necessidade de que o STJ reexamine a questão sob esse novo enfoque, justificando inclusive a mudança do posicionamento recentemente consolidado.
Para o empregador, o mais seguro é seguir recolhendo o imposto na fonte nessas hipóteses, a fim de evitar uma autuação fiscal; para o empregado demitido, porém, resta ainda uma esperança de recuperar o valor do imposto pago em razão do recebimento dessas verbas.
*** Guilherme Follador é advogado militante do escritório Assis Gonçalves, Kloss Neto Advogados.